Não Diga que Não Vê

a discriminação invisível


O que poucas pessoas entendem quando se fala de homofobia em Portugal é a gravidade da situação. Por um lado, muitas formas de homofobia continuam legitimadas e não são vistas como expressões de discriminação: nem sequer é ainda politicamente correcto apontá-las. Por outro lado, não falta quem negue a existência desta discriminação: mesmo quem se pronuncia favorável aos direitos da comunidade lgbt está muitas vezes convencido de que o problema está quase sarado, ou mesmo de que “os homossexuais já não são discriminados”. Muitas vezes são até lésbicas, gays, bissexuais ou trans (LGBT) @s primeir@s a dizê-lo. Mas isso, infelizmente, não corresponde à realidade: se alguns e algumas de nós sofrem a homofobia de uma forma mais evidente (e exigem a nossa solidariedade), tod@s continuamos a ser inferiorizad@s no dia-a-dia, nos media, na sociedade, na própria lei.

A homofobia sempre prejudicou e destruiu imensas vidas. E, na maior parte dos casos, com o mesmo silêncio e a mesma invisibilidade para que sempre foram remetidas (por essa mesma discriminação) as vivências homossexuais. A maior parte das situações de homofobia – familiar, religiosa, no trabalho, na escola, no quotidiano, nos media – ou não chega ao conhecimento público (porque há medo) ou passa desapercebida enquanto discriminação – actua nos subentendidos, num inconsciente colectivo moldado para o preconceito, nas verdades universais que ninguém questiona. Como a “naturalidade” e “exclusividade” da heterossexualidade, e a sua pretensa “superioridade” moral. O problema é, por isso, mais profundo: é que a homofobia age muitas vezes de forma invisível, começando pelas nossas mentes, e “nem sempre se revela de forma óbvia, isto é, através do insulto, do ataque físico ou da exclusão na base explícita de atitudes ou palavras homofóbicas. Muitas vezes ela revela-se no ocultamento, no silenciamento, na aceitação tácita de que as regras e as soluções se aplicam a um mundo normativo - um mundo sem homossexuais.”

A homofobia é uma matriz poderosa nas sociedades actuais: passa de pais para filh@s - do inocente ”não sejas maricas” ou “vai levar no cú” (a linguagem não é neutra) à homofobia “friendly” de quem acha que os homossexuais devem ter direitos, “adoptar é que não” – há sempre um “não”, um reconhecimento de cidadania mas “de segunda”, um reconhecimento de igualdade, mas só alguma.
A homofobia é ensinada e aprendida em todos os meios sociais, faz parte do sistema de aprendizagem e incorporação da desigualdade, da distinção ente indivíduos, da vergonha de nós mesmos, das hierarquias sociais, da submissão. Quando a entranhamos, somos a nossa primeira limitação. Provavelmente, não só somos alvos inconscientes das suas injustiças diárias, como até discriminamos de igual modo o nosso igual, tão enterrado está o preconceito na própria população LGBT. É que nós também fomos educados no heterossexismo.
A homofobia afecta negativamente tod@s, independentemente da orientação sexual, embora assuma expressões mais violentas contra a população LGBT, e embora afecte cada um destes grupos – lésbicas, gays, bi e trans – de formas muito particulares. A homofobia é estrutural e estruturante de uma sociedade que temos que mudar e tornar mais justa.

Por cada jovem LGBT que se suicida, por cada um/a que sofre em silêncio e solidão as suas próprias contradições, por cada gay impedido de doar sangue aos hospitais que dele precisam, por cada jovem expuls@ de casa dos pais por amar quem ama, por cada pessoa que pela sua orientação sexual perde o emprego, ou não encontra, ou passa anos a ver os colegas passarem-lhe à frente na carreira, por cada agressão e cada insulto, por cada artigo homófobo nos jornais, por cada omissão - nos livros de História - da perseguição a homossexuais no Holocausto nazi, por cada gay ou lésbica impedid@ de entrar nas Forças Armadas, por cada casal impedido de se visitar num hospital ou afastado do reconhecimento como família plena, por cada pessoa que fica sem tecto para viver, por cada um/a impedid@ de aceder a um direito básico de cidadania devido à sua orientação sexual ou identidade de género ... DE CADA UMA E DE TODAS ESTAS E OUTRAS VEZES, SOMOS TOD@S DISCRIMINAD@S!

A homofobia representa um problema social gravíssimo. Não se trata, como abordam os meios de comunicação social, de um mero “drama humano e pessoal”. É em primeiro lugar uma questão política, social e de direitos humanos, e há leis, instituições, pessoas, responsáveis políticos a quem apontar o dedo. Os media falam desta discriminação como se ela fosse uma inevitabilidade, quase o resultado de se ser homossexual, e não resultasse da acção concreta de indivíduos preconceituosos (a combater), de regras discriminatórias (a eliminar) e de uma organização social homofóbica (a mudar).

Face aos efeitos sociais devastadores da homofobia, face ao quadro legal que a reproduz com a conivência do poder político e de um sistema judicial conservador, e face à imoralidade e ao drama das tantas situações de injustiça e desespero que ela provoca, a resposta do movimento LGBT e de tod@s quant@s querem combater a segregação tem que estar na “desmontagem” e visibilização dos mecanismos da homofobia e do seu efeito concreto sobre as nossas vidas concretas.

referência | Miguel Vale de Almeida
blog Os tempos que correm [http://valedealmeida.blogspot.com]


Versão On-Line de el gê bê tê 2004 por PortugalGay.PT
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