Não Diga que Não Vê

Amor Próprio


Rui Zink


Era uma vez um homem. Esse homem às vezes sentia, sentia... Enfim, sabe-se lá o que sentia. Nada que o casamento não curasse, pensava. Nada que o casamento com uma boa mulher não resolvesse.
Conheceu uma boa mulher, a quem amava, e que o amava também, a ele. Casaram. Tiveram filhos. Quinze anos depois, o homem sentiu a primeira tentação do adultério e... bem, com um homem. Mas resistiu. Era importante para o seu amor próprio. Nem sequer era pelo que os outros iriam pensar.
Era pelo que ele próprio iria pensar.Cinco anos mais tarde, fez uma viagem de negócios a outra cidade. No bar do hotel, conheceu um jovem advogado, com o cabelo muito bem penteado, de sonho – mas... lá resistiu. Embora já não fizesse amor com a mulher, a sua noção de fidelidade e a emergência (como um vómito) de um sentimento de culpa e vergonha foram mais fortes do que o desejo. Houve mais algumas oportunidades de dar a chamada “facadinha no matrimónio”, mas este homem, heróico, estóico, resistiu sempre.
Até que, aos poucos – enfim, a carne pode ser fraca mas a idade não perdoa – se foi tornando menos difícil resistir.
Aos setenta e quatro anos, a mulher adoece. Tem cancro. O homem vai visitá-la todos os dias ao hospital. Um dia, esvaída de forças, ela pede-lhe que se aproxime. Tem algo para confessar. Algumas décadas antes, durante uma viagem de negócios dele, recebera em casa uma... bem, uma namorada. Amante é uma palavra muito feia, não é? E, anos mais tarde, outra. Ele lembrava-se daquela amiga que estava sempre lá em casa? Sim, aquela que ele dizia que estava sempre lá em casa qualquer dia quase que podia ir para lá morar. Pois. Foi um amor, uma ternura que durou anos. Ela bem sabia que não era lá muito próprio, provavelmente nem amor era, mas...
Ele de qualquer modo que não se importasse, afinal o que podiam duas mulheres fazer juntas que fosse assim tão grave? E, agora que estava a morrer, sentia-se feliz por poder dizer-lhe, tirar aquilo do peito, partilhar com ele algo que, afinal, era importante para ela mas não se intrometia entre eles, entre o seu casamento.
Por um momento, o homem ficou sentado, a olhar para a mulher. Depois, olhou para o vazio.


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